Recursos tecnológicos devem ser usados com intencionalidade pedagógica e de forma significativa para promover a criação e a experimentação dos alunos
À primeira vista, os números sobre tecnologia no ambiente escolar impressionam: segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2019, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2020, 88,1% dos estudantes brasileiros têm acesso à internet e 81% das escolas públicas do país possuem laboratórios de informática.
No entanto, um olhar mais atento revela um problema muito mais profundo: na Educação Básica, enquanto 4,1 milhões de estudantes da rede pública não têm acesso à conectividade, apenas 174 mil alunos do setor privado não possuem conexão à rede. A desigualdade não para por aí, evidenciado-se também quando o recorte é geográfico. Nas regiões Norte e Nordeste, o percentual de alunos de escolas públicas que utilizam a internet cai para 68,4% e 77%, respectivamente.
Apesar dos avanços rumo à inclusão feitos nos últimos anos, o retrato trazido pelo estudo evidencia os muitos desafios que as escolas públicas enfrentam para implementar um currículo alinhado à cultura digital, uma das competências gerais da Educação Básica estabelecida pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
“No período da pandemia, vimos que nossos alunos de escolas públicas não têm acesso à conectividade”, aponta Débora Garofalo, diretora de Inovação na empresa Multirio, vinculada à Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (RJ). “Esse cenário mostra a importância de fomentar políticas públicas para o ensino das tecnologias e para a garantia da democratização do acesso a esses estudantes.”
Diferentes aspectos da tecnologia educacional
Garantir a universalização é, porém, só o primeiro passo. Conforme explica Paulo Blikstein, professor da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, e diretor do Transformative Learning Technologies Lab, “você pode colocar internet em todas as escolas e isso não quer dizer que a aprendizagem vai melhorar.”
Para mostrar a dimensão do desafio no Brasil, o professor diferencia três camadas envolvidas quando utilizamos o termo tecnologia educacional. “Uma primeira camada são as tecnologias que chamamos de ‘infraestrutura’: conectividade, existência de computadores, equipamentos, etc, que são pré-requisitos para fazer as outras coisas.
A segunda é o que a gente denomina de ‘tecnologias de ensino’, isto é, tudo que otimiza o ensino mais tradicional, como softwares de correção e otimização de textos e aulas de reforço em vídeo. Seria um uso para otimizar a escola, mas do jeito que ela já é. Isso tem um reflexo pequeno, mas importante”, diz.
E, finalmente, há a terceira camada, em que de fato ocorre uma mudança revolucionária no processo de ensino e aprendizagem: o uso das chamadas tecnologias de criação e experimentação, baseadas em metodologias ativas de aprendizagem como laboratórios makers e softwares de simulação de ciências, entre outros. “O que o mundo está fazendo é esta terceira camada, que é mudar a cara da escola, ter mais horas para testar teorias, por exemplo, com os alunos em laboratório”, afirma Paulo.
Sem intencionalidade pedagógica não há inovação
Docente da pós-graduação da Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Maria Elizabeth Bianconcini de Almeida pesquisa Novas Tecnologias em Educação e concorda que o desafio da escola pública vai muito além da mera inclusão digital.
Segundo ela, por se tratar de um contexto emergencial, durante a pandemia, o ensino remoto priorizou o domínio instrumental, mas a dimensão pedagógica do uso das tecnologias ficou em segundo plano. “Se você não usar a tecnologia de modo relevante, significante para a prática, você não terá inovação pedagógica”, resume.
Ela defende que a utilização das tecnologias na escola deve trazer, sobretudo, contribuições para o processo de ensino e aprendizagem. “Quando falamos do uso com intencionalidade pedagógica, estamos falando de uma utilização que realmente integra as funcionalidades que as tecnologias oferecem aos objetivos de aprendizagem, ou seja, ao próprio currículo.”
Para ela, a concepção de tecnologia como linguagem e instrumento da cultura é a que deve sobressair. “As novas tecnologias fazem parte da nossa cultura. Nós já temos nosso pensamento estruturado por elas. Então, os alunos automaticamente se reportam a ela na sua aprendizagem”, destaca.
Necessidade de formação dos professores para uso da tecnologia
A apropriação das novas tecnologias, por sua vez, exige formação docente. Mais do que instrumentalizar o professor para o manejo técnico, ele precisa ter clareza das possibilidades que as novas tecnologias oferecem.
“Pensar a prática docente significa planejamento. A formação de professores para integrar as TICs aos processos de ensino-aprendizagem tem que aliar o processo de apropriação dessas tecnologias a uma discussão sobre pensamento tecnológico, em uma perspectiva crítica”, ressalta Maria Elizabeth. Ela argumenta que é preciso fazer a crítica sobre a própria mídia, as fontes de educação e pesquisa, para que professores e alunos não caiam “nessa questão terrível da informação falsa”.
Débora endossa essa visão. Ela acrescenta que a maioria dos professores não vivenciou a formação tecnológica para replicá-la, o que gera insegurança. “Basta ver a discussão que temos sobre inserir ou não aparatos tecnológicos, como celulares, na sala de aula. São coisas que estão chegando agora na mão do professor e eles se sentem despreparados”, opina.
Tecnologia como meio e não fim
Inaugurado em 2022, o Projeto GET (Ginásio Educacional Tecnológico) da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro foi criado para colocar em prática as possibilidades que as novas tecnologias trazem para a Educação. Equipadas com modernos recursos tecnológicos, como impressoras 3D, laboratórios makers, tablets, entre outros, essas escolas se diferenciam das demais pela sua metodologia: partem das necessidades reais vividas pelos alunos para, com o auxílio da tecnologia, trabalhar o currículo da rede.
“São escolas que passam por uma reformulação não só na sua estrutura física, mas pedagógica. Os equipamentos aqui não são os fins, mas os meios para a aprendizagem”, salienta Cadu Jascone, coordenador do projeto. “Remodelamos o processo de aprendizagem, saindo da teoria instrucionista, na qual o aluno copia a matéria e vai para casa fazer lição, para trabalhar com a teoria construcionista, em que o aluno é ativo no processo de aprendizagem.”
Valendo-se de metodologias ativas, os alunos do GET aprendem por meio da resolução de situações-problema. “As habilidades do currículo são desenvolvidas por meio do questionamento dos alunos. Partimos de perguntas instigantes ou objetos transicionais para começar um projeto, que pode ser mensal, bimestral ou semestral”, conta Cadu. “Temos hoje um consumismo digital, uma sociedade que consome tecnologia. E nós fomentamos o protagonismo digital, uma formação para a cidadania.”
Novas tecnologias e protagonismo dos estudantes
É ao longo do desenvolvimento dos projetos que a tecnologia entra para que os alunos possam aprender de forma diferenciada, dando concretude às teorias vistas em sala de aula. As aulas de geometria, por exemplo, podem começar em sala com papel e régua para, em seguida, serem retomadas nos laboratórios com o uso de softwares como o GeoGebra, que possibilita criar trapézios, pirâmides e outras figuras em três dimensões. Posteriormente, os alunos podem tocar em suas criações ao imprimir seus modelos por meio de uma impressora 3D.
Outras vezes, a tecnologia utilizada nas escolas é muito mais corriqueira do que se imagina, como o uso de uma máquina de costura. Em uma das escolas GET, os alunos estão trabalhando Matemática e outras áreas do conhecimento por meio da confecção de uma colcha de retalhos. Eles usam unidades de medida, figuras geométricas, raciocínio lógico para, por exemplo, intercalar a cada três retângulos um quadrado. “E essa é a lógica da programação: uma sequência de 0 e 1 que, dependendo da ordem, cria um efeito. E dá para interligar isso com Ciências, afinal, o que é o DNA? É um conjunto de códigos”, exemplifica Cadu.
As conexões não param por aí. A colcha de retalhos também foi ponto de partida para trabalhar a questão da ancestralidade das famílias dos alunos. Como muitas se dedicam ao Carnaval, é costume de grande parte dos estudantes saírem da escola e irem ao barracão para ajudarem a costurar as fantasias para as escolas de samba. “Isso, antes, era uma vergonha para eles, principalmente para os meninos. Então também foi uma oportunidade para trabalhar a equidade de gênero, falando que os meninos também podem costurar”, diz o coordenador do projeto.
Além de aulas mais instigantes e em consonância com a realidade e cultura dos alunos, Paulo Blikstein acredita que a integração das novas tecnologias ao currículo escolar de forma a potencializar o protagonismo dos alunos é uma forma de prepará-los para uma sociedade que requer um conhecimento cada vez mais complexo. E não se trata apenas de compreender o que é um algoritmo.
“Temas como racismo e mudança climática são questões complexas que exigem raciocínio, engajamento, e não uma fórmula pronta para decorar. A gente precisa de uma educação mais problematizadora para uma escola que eduque para o século XXI”, finaliza.